sexta-feira, abril 07, 2017

As imobiliárias e o dever de indenizar

As imobiliárias e o dever de indenizar, predio - foto3 - aquaEsqueleto do Edifício Aqua, na movimentada Mendonça Furtado

por Célio Simões (*)
Uma das mais lídimas aspirações de qualquer pessoa, na fase adulta principalmente, é a aquisição da moradia própria, seja ela módica habitação popular ou uma unidade residencial de alto padrão.
É um bem tão vital para o ser humano que a CF/88 (art. 5.º, XI) define ser a casa “o abrigo inviolável do indivíduo”, ninguém nela podendo penetrar sem o expresso consentimento do morador, salvo exceções contidas no próprio dispositivo constitucional, quando a permissão se torna prescindível: flagrante delito, desastre, prestação de socorro e determinação judicial.
O conceito legal de casa é amplo, podendo ser apartamento, trailer, barraca, hotel, pensão, pousada ou o ambiente onde alguém exerça sua atividade profissional.
Feita essa consideração, é possível estimar a angústia de quem, mediante privações, fez economias ou embarcou em financiamento de elevado valor de entrada e não menos “salgadas” prestações, para aquisição de um imóvel residencial, para mais adiante vê-lo irremediavelmente perdido por haver sido ludibriado em sua boa-fé, seja pela incorporadora, pela construtora ou por ambas, quiçá em conluio com um corretor (pessoa física) ou imobiliária (pessoa jurídica).
Venho de ler a série de reportagens do blog, produto útil do jornalismo informativo e investigativo de seu editor, sobre o que ocorreu com o que seria o imponente Edifício “Aqua”, obra iniciada em 2013 na Avenida Mendonça Furtado (a principal de Santarém), projetado para trinta e um andares, cinquenta e quatro unidades, dois apartamentos por andar, com paradisíaca visão do mundialmente famoso encontro das águas do Tapajós com o Amazonas.
De tão sedutora a proposta, as vendas ultimaram-se em tempo recorde, porém até hoje, para desespero de trabalhadores e compradores, o empreendimento resta inconcluso, estagnado nas três primeiras lajes, tudo indicando flagrante abandono.
A quem recorrer? O que e de quem cobrar pelo calote sofrido? Pelas notícias veiculadas, o Poder Judiciário já foi acionado em desfavor de todos os envolvidos nas transações, mas noto que ainda sobrepairam dúvidas se a empresa imobiliária que intermediou as vendas deve ou não ser demandada pelos prejudicados.
Os contrapontos dos leitores evidenciam questionamentos sobre o grau de responsabilidade da imobiliária e é sobre esse aspecto que faço uma ligeira abordagem.
Os serviços de intermediação (pelas imobiliárias) alcança um arco de atividades que envolvem a captação dos clientes, a divulgação, a negociação e a corretagem dos imóveis que lhes são confiados, impondo, em contrapartida, inquestionável carga de responsabilidade às mesmas quanto aos negócios que participam e do qual tiram apreciáveis lucros através das comissões que recebem.
Não se pode atribuir papel secundário aos que, atuando regularmente como corretores (pessoas físicas ou jurídicas), interferem na relação de venda e compra de bens imóveis.
Estão eles, tanto quando a incorporadora e a construtora, passíveis de responder judicialmente quando atuam com imprudência, negligência e má-fé pelos danos – inclusive morais – que venham a causar aos clientes.
Em se tratando de corretagem, o art. 723 do Código Civil exige dos que a ela se dedicam, extrema probidade em sua atuação, deixando evidente a obrigação legal e moral que têm, o que os obriga a agir com a máxima diligência e prudência, prestando espontaneamente aos clientes as informações inerentes à segurança, os riscos do negócio e a absoluta regularidade da documentação.
Tais informes referem-se a todos os aspectos envolvidos no negócio em andamento, ainda que os adquirentes não façam indagações a respeito, sob pena de arcarem com os danos que derem causa.
Observe-se que o parágrafo único do aludido artigo 723 é de cristalina clareza: “Sob pena de responder por perdas e danos, o corretor prestará ao cliente todos os esclarecimentos acerca da segurança ou do risco do negócio, das alterações de valores e de outros fatores que possam influir nos resultados da incumbência”.
No caso do edifício santareno, segundo indicativo do blog, as ações judiciais foram, em boa hora, aforadas contra a incorporadora, a construtora, os sócios e também a imobiliária, abarcando o universo dos envolvidos na transação.
Quanto aos sócios, poderão ser demandados, porquanto vigora no direito positivo brasileiro a desconsideração da pessoa jurídica, instituto que permite seja alcançado o patrimônio dos mesmos por prejuízos causados a terceiros, quando os bens da empresa forem insuficientes para suportar as condenações.
Resulta que o patrimônio pessoal, incluindo ativos financeiros de cada um deles, poderá ser afetado para atender às indenizações impostas pelo judiciário.
É a teoria da “disregard doctrine”, aplicável quando provada a existência de confusão patrimonial e o desvio de finalidade, disciplinada no art. 50 do CC. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), que é 1990, portanto anterior ao Código Civil/2003, já havia adotado essa mesma teoria, como se nota no art. 28, e de forma muito mais ampla, pois permite à autoridade judiciária desconsiderar a pessoa jurídica inclusive “quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração”.
Convém lembrar que os sócios ainda podem sofrer as sanções da lei penal, na hipótese de ficar caracterizado o estelionato, crime contra o patrimônio previsto no art. 171 do CPP, tipificado quando alguém obtém, para si ou para outro vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer meio considerado fraudulento.
Acrescento, também, que na relação de compra e venda de imóveis, aplicam-se outras normas do CDC, eis que a imobiliária, a construtora, a incorporadora e o comprador estão albergados no conceito legal de fornecedor, consumidor, serviço e produto, preconizados pelos artigos 2º e 3º desse diploma legal.
Ademais, o art. 14 dispõe que o fornecedor de serviços (refiro-me aqui à imobiliária) responde independente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Mesmo que não exista culpa da imobiliária, se os prejuízos causados o foram por serviços prestados de forma insuficiente, defeituosa, com sonegação de informações, lastreados em propaganda enganosa, em conluio com terceiros para lesar os clientes, sem esclarecer sobre os perigos do negócio, haverá o dever de indenizar, haja vista que sua responsabilidade é objetiva.
Entretanto, se a intermediação do negócio foi feita por corretor na condição de profissional liberal (autônomo) e não por empresa imobiliária (ou por empregado desta), será sempre necessária a prova da existência da culpa, eis que, no caso em exame, a responsabilidade será subjetiva (Art. 14, § 4°).
Eis o conteúdo ideológico do dispositivo em questão: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
Os adquirentes que perderam suas economias nessa malfadada negociação irão enfrentar uma porfia judicial tortuosa, pela indispensável necessidade de coleta de provas robustas e pela situação preocupante que enfrentam os magistrados, sabidamente assoberbados em suas múltiplas e elevadas atribuições.
É induvidoso que a boa qualidade dos julgamentos é incompatível com o excessivo numero de casos que cada juiz tem que resolver, como afirmou o professor Egas Dirceu Moniz de Aração há quase quarenta anos, em seu discurso de posse no Instituto dos Advogados do Brasil, em Setembro de 1981. O sombrio prognóstico vale para os dias de hoje, onde a situação, por razões várias, só tende se agravar.
No que concerne aos empregados, a competência para a reparação dos direitos violados dos que tiveram relação de emprego ou de trabalho com a construtora é da Justiça do Trabalho, que saberá aplicar a lei aos fatos, decretando na fase própria dos processos, a indisponibilidade dos bens, direitos, ações e o bloqueio das contas bancárias dos que constarem no título judicial (sentença), montante que espero seja suficiente para a quitação dos débitos (não raro, o direito à indenização se frustrar por falta de bens penhoráveis) assim prestigiando o dispositivo constitucional que põe em relevo a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
O fato divulgado pelo blog surpreende pelo ineditismo de ter acontecido em Santarém. Porém há registros de casos análogos em muitas outras cidades brasileiras, sendo razoável concluir tratar-se de mais um capítulo no nosso atual e vergonhoso cenário, diariamente sacudido por denúncias de negócios fraudulentos inspirados na burla, no logro e na vigarice, tanto na administração pública como no setor privado, sendo vítimas invariáveis os contribuintes e consumidores, tudo movido pela inescrupulosa sede do enriquecimento ilícito, prática odiosa e cruel que só traz vantagens aos espertos beneficiários de tão iníqua situação.
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
(*) Advogado e escritor obidense, reside em Belém. É membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e da Academia Paraense de Jornalismo. Escreve regularmente no Blog.

Nenhum comentário: